Brasil: o país dos 100 milhões de raios
Dos 3,15 bilhões de raios que golpeiam a Terra e seus habitantes durante um ano, 100 milhões deles vêm desabar em terras brasileiras. O número, divulgado no ano passado por uma equipe de cientistas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), em São José dos Campos, São Paulo, não é superado por nenhum outro país. E ficou bem acima das estimativas que davam conta de 30 milhões ao ano. Agora, sabemos com segurança: em quantidade de relâmpagos, ninguém segura este país.Mas a pesquisa do INPE vai muito além de  contar faíscas no céu. Desde 1989, num trabalho que usa enormes balões —  do tamanho de prédios de 20 andares —, o Instituto vem medindo a carga  elétrica das nuvens e dos relâmpagos que atingem a Região Sudeste. Para  isso, os balões levam sensores elétricos, sensores de raios X e até  máquina fotográfica e câmera de vídeo. Registram tudo o que acontece a  30 quilômetros de altura.
 Tanta investigação acabou encontrando  as particularidades dos raios brasileiros, que são diferentes dos que  caem em outros lugares. “Sessenta por cento dos que atingem a Região  Sudeste, em alguns dias do verão, têm carga positiva”, diz Iara Cardoso  de Almeida Pinto, geofísica espacial, que juntamente com o marido, o  também geofísico espacial Osmar Pinto Jr., comanda a pesquisa. Outra  surpresa, pois 90% dos raios do mundo têm carga negativa.
 Um  detalhe: raios positivos são, geralmente, mais destrutivos. Embora os  relâmpagos sejam mais freqüentes dentro das nuvens do que das nuvens  para o solo, os mais estudados são justamente estes, que vêm bater no  chão — os mais ameaçadores.
 “Os raios são fenômenos naturais que  aguçam a curiosidade mas causam prejuízos e mortes”, diz Osmar Pinto Jr.  Calcula-se que mais de 100 brasileiros morram todos os anos vítimas de  raios (positivos e negativos). Quanto aos prejuízos, de acordo com dados  da Eletropaulo (Eletricidade  de São Paulo), no ano passado ocorreram 974 casos de falhas ou  interrupções da rede elétrica causadas pelos raios. Só para se ter uma  idéia do tamanho do prejuízo, se um grande blackout atingisse toda a  região da Grande São Paulo por uma hora implicaria uma perda de 30  milhões de dólares.
 Mas, afinal, como se formam as faíscas que  vemos no horizonte quando se anuncia uma tempestade? Relâmpagos são  gerados dentro de uma nuvem muito particular: a cumulonimbo,  que se diferencia das outras por ser verticalmente mais extensa. Ela se  forma a 2 quilômetros de altura do solo e se estende até 18 quilômetros  acima.
 Tudo começa quando o ar quente e úmido próximo do solo se  eleva na atmosfera (ele sobe porque é mais leve que o ar acima dele). À  medida que vai subindo, esfria, até chegar ao topo da nuvem onde a  temperatura é muito baixa, de 30 graus negativos. Resultado: o vapor de  água que estava misturado ao ar quente transforma-se em granizo e começa  a despencar (porque é mais pesado que o ar) para a base da nuvem. Na  queda, vai se chocando com outras partículas menores, cristais de gelo  principalmente. Os choques fazem o granizo e os cristais ficarem  eletricamente carregados.
 As cargas negativas presas ao granizo  vão para a base da nuvem. Já as positivas ficam nos cristais de gelo,  mais leves, que tendem a subir com o ar quente que vem de baixo para o  topo da nuvem. Ou seja, as cargas se separam: positivas em cima e  negativas em baixo. Em dado momento, as cargas positivas e negativas  atingem intensidade muito alta. É o que basta para o surgimento do relâmpago. Para equilibrar cargas tão diferentes, a eletricidade  anda sozinha, sem fio nem nada, pelo ar. Em outras palavras: um raio  não é nada mais que uma carga elétrica cruzando a atmosfera.
 A  maioria dos raios começa e acaba dentro das nuvens. São poucos os que  vêm para o chão. Sobre esses há duas curiosidades. A primeira é que só  podem ser vistos na fase final. Logo que o raio sai da nuvem e segue em  direção do solo não pode ser visto (nessa fase é chamado de “líder  escalonado”). Quando essa faísca tortuosa chega a 50 metros do chão, sai  da terra outra faísca em direção à nuvem (é a “descarga conectante”) e  ela ainda não pode ser vista. Só quando as duas correntes se encontram é  que tudo se ilumina. O que vemos, então, é a “descarga de retorno”. A  segunda curiosidade: os raios que enxergamos, portanto, saem da terra  para o céu. Por ilusão de óptica, achamos que o clarão do relâmpago vem do alto para a terra.
 E  aqui chegamos à pergunta: por que alguns raios são positivos e outros  negativos? O que os diferencia é o local da nuvem onde se originam. Os  negativos saem da parte baixa da nuvem, onde se concentra a energia negativa. Já os positivos saem do topo da nuvem, onde ficam as partículas carregadas positivamente.
 Há outra diferença importante: nos raios positivos, a corrente elétrica contínua — a que persiste até o relâmpago  acabar — dura cerca de 200 milésimos de segundo, enquanto nos negativos  a corrente dura, em geral, menos da metade. Justamente porque nos raios  positivos a corrente contínua dura mais é que eles são mais perigosos e  destrutivos, capazes de iniciar um incêndio florestal (os negativos  raramente causam incêndio). Outra diferença é que o raio negativo  carrega uma corrente contínua de 100 ampères (o ampère é a unidade de  intensidade da corrente elétrica), enquanto o positivo carrega o dobro:  200 ampères, energia suficiente para alimentar vinte fornos elétricos domésticos.
 Mas  o que os pesquisadores querem entender é por que, em algumas  tempestades da Região Sudeste, 60% dos relâmpagos são positivos. Além de  tudo, esse tipo de relâmpago,  por não ser freqüente, é pouco conhecido e só começou a ser estudado em  detalhes na década passada. Para tentar explicar a ocorrência desses  raios positivos, a equipe do INPE formulou uma hipótese: a maior  quantidade deles por aqui estaria relacionada a gigantescas  concentrações de nuvens que vêm da região antártica em direção ao  Brasil. Quando encontram o ar quente das regiões Sul e Sudeste, produzem  aglomerados gigantes de cumulosnimbos. O topo dos aglomerados “entorta”  para o lado formando uma cauda gigantesca só com cargas positivas. Isso  explicaria a quantidade maior de raios positivos nessas regiões. A  parte superior dos cumulosnimbos estaria tão afastada da parte inferior  que teria mais facilidade de trocar energias diretamente com o solo. A  conclusão definitiva (a confirmar ou descartar a hipótese) só virá  depois que os cientistas terminarem a análise dos 30 milhões de dados  recolhidos pelos balões.
 O primeiro experimento para pesquisar os  raios no Brasil foi realizado em dezembro de 1989, na base de  lançamentos de balões do INPE, em Cachoeira Paulista, interior de São  Paulo. O mais impressionante foi mesmo o enorme balão estratosférico, de  7 500 metros cúbicos. Feito de plástico muito fino, leve e  super-resistente à radiação ultravioleta do Sol, ele partiu para as  nuvens carregando um equipamento de 100 quilos. A 30 quilômetros de  altura, deu início à missão de sentir a força dos relâmpagos e contá-los  em um raio de 100 quilômetros.
 Isso é possível porque os raios  emitem radiação: a luz, por exemplo, é uma forma de radiação. Além  disso, eles também emitem ondas de rádio, que interagem com partículas  que existem ao redor da Terra gerando outro tipo de radiação: os raios  X. Tudo isso pode ser captado, registrado e também filmado e  fotografado.
 Na experiência de 1989, o balão levava apenas  sensores para medir as cargas elétricas dentro das nuvens e dos  relâmpagos. A peça central dos sensores são bolas metálicas de 20  centímetros de diâmetro: atingidas pelos impulsos elétricos que saem das  nuvens, elas medem as correntes. Os registros são captados por  circuitos eletrônicos dentro do equipamento e transformados em sinais.  Codificados digitalmente, os sinais são transmitidos para a superfície e  gravados num microcomputador para análises posteriores.
 Nas  experiências seguintes, em janeiro e fevereiro de 1994, além dos  sensores elétricos, o equipamento incluiu uma câmera de vídeo, uma  máquina fotográfica e um sensor de raios X — um cristal de iodeto de  sódio sensível aos raios X. O cristal é acoplado a uma  fotomultiplicadora, que amplifica um sinal de raios X e o transforma  numa corrente elétrica cuja intensidade é codificada e gravada no  microcomputador. A câmera de vídeo e a máquina fotográfica finalmente  registram as imagens de tudo o que acontece ao redor.
 E lá se vai  o balão com toda essa carga pendurada. Ao chegar a 30 quilômetros de  altura, começa a se mover para o oeste (no interior do Estado), passando  sobre as nuvens. O vôo dura de dez a doze horas. No final, o  equipamento cai de pára-quedas (para depois ser recuperado) e o balão se  perde no ar.
 Depois dos estudos, os cientistas esperam sugerir  formas mais adequadas de proteção contra os raios brasileiros, positivos  e destruidores. “Costumo dizer que nos protegemos bem contra relâmpagos  que caem em outros lugares do mundo”, brinca Osmar Pinto Jr.
 Conhecer  melhor os relâmpagos que caem em determinadas regiões significa evitar  prejuízos, como os causados por blackouts — interrupções no fornecimento  de energia elétrica.
 A  aviação também pode se precaver conhecendo os trechos das rotas mais  sujeitos a relâmpagos. Se não derrubam aeronaves, eles provocam panes  momentâneas nos computadores de bordo — e tempestades sempre acabam  chacoalhando os passageiros.
 Nessa pesquisa, eles contam com a  colaboração da Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) que tem um  Sistema de Localização de Tempestades (SLT ou LPATS — Lightining  Position and Tracking System). Minas Gerais é o único Estado brasileiro  que possui uma rede de detecção e rastreamento de relâmpagos. “Eles são  responsáveis por 70% do total de desligamentos da rede elétrica no  Estado”, constata o engenheiro eletricista José Henrique Diniz, do  Departamento de Pesquisa, Desenvolvimento e Normalização Técnica da  Cemig.
 Para avaliar os efeitos das tempestades, as torres de  transmissão de Minas têm elos magnéticos, dispositivos que medem a  corrente dos raios que caem sobre elas. Esses e outros equipamentos  ajudam a reduzir os estragos causados pelos 7,5 milhões de relâmpagos  que caem anualmente naquele Estado.
 A melhor forma de proteção contra os relâmpagos, a despeito de toda a tecnologia moderna, continua sendo o primitivo pára-raios,  uma invenção do século XVIII. Não pode haver aparelho mais simples.  Colocada sobre uma casa, uma haste metálica ligada a um fio condutor de eletricidade enterrado no chão será sempre a primeira parte da construção a receber o relâmpago. Primeiro, por ser de metal; segundo, por ter um fio condutor que leva a eletricidade para a terra e, terceiro, por ser o ponto mais alto da casa.
 Bastava saber disso para se inventar o pára-raios.  Mas antes era preciso descobrir que os raios são um fenômeno elétrico. E  essa foi a façanha realizada em 1752 pelo cientista americano Benjamin  Franklin.
 Pouco antes de uma tempestade, ele empinou uma pipa em  direção às nuvens, já desconfiado de que elas estivessem repletas de  cargas elétricas. Com sorte e muita habilidade, conseguiu provar isso ao  perceber que uma parte dessas cargas descia pelo fio da pipa. Foi ali  que nasceu o pára-raios.  Franklin teve mesmo uma boa mãozinha da sorte, porque, se um raio de  verdade — e não as pequenas cargas que estavam se acumulando nas nuvens,  antes de se transformarem em raio — houvesse caído no fio, ele não  teria vivido para contar a história. Tempos depois, o físico russo Georg  Richmann, ao tentar repetir o feito, morreu eletrocutado.
 Com o pára-raios,  boa parte dos transtornos ocasionados por relâmpagos puderam ser  evitados. Hoje, casas e edifícios são protegidos por eles. Prédios mais  baixos e de áreas pequenas precisam de um único pára-raios. Já edifícios de dez andares para cima costumam ter mais de um. Deles saem cabos condutores de eletricidade que correm por fora da estrutura e descem para o solo.
 Em busca de maior proteção, no início deste século, foram introduzidos pára-raios  que tinham na ponta uma cápsula radioativa, feita de amerício, um  elemento químico. Uma pequena abertura na cápsula permite que a radiação  escape, atraindo os raios. Mas, por causa da radioatividade, acabaram  proibidos no mundo inteiro. Em São Paulo, 30% dos edifícios ainda o  utilizam. O prazo estabelecido por uma lei municipal para a retirada  final desses equipamentos é abril do ano que vem.
 Outra forma de  proteção foi inventada no século XIX, pelo físico inglês Michael Faraday  (1791-1867). Ele descobriu que um dispositivo com paredes de metal,  como uma gaiola, atuava como blindagem contra as descargas elétricas que  vinham de fora, protegendo seu interior. Por esse princípio, um carro  com chapas de aço ou um avião funcionam como o equipamento que levou seu  nome: gaiola de Faraday.
 É possível, hoje, aproveitar as  ferragens do concreto armado dos edifícios, se elas estiverem bem  amarradas entre si. “Se conectarmos a essas ferragens pequenas hastes na  cobertura do edifício, elas também vão funcionar como uma gaiola de  Faraday”, explica o engenheiro eletricista Duílio Moreira Leite,  pesquisador do Instituto de Eletrotécnica e Energia  da Universidade de São Paulo. Isso é recente no Brasil e existem poucos  prédios construídos assim. E não oferecem perigo pois, se um raio  atingir as hastes, a corrente elétrica se confina às ferragens e vai  diretamente para o solo.
 Mas uma tarefa complicada para  arquitetos e engenheiros é descobrir proteções eficazes e também  estéticas. Por isso, os engenheiros bolaram pequenas cercas de metal que  dão a volta no teto das construções, com hastes pequenas em cada canto.  Elas não prejudicam a harmonia dos edifícios.
Para saber mais:
 Um show entre o céu e a Terra
 (SUPER número 3, ano 4)
 O que a ciência sabe
 (e o que a ciência não sabe) (SUPER número 6, ano 9)
 Será que vai chover?
 (SUPER número 3, ano 11)
Notáveis e demolidores
 Desde  o século XIV, a história registra transtornos, muitas vezes trágicos,  por causa dos relâmpagos. Veja como aconteceram alguns desses casos
A saga de Sullivan
 Talvez  ninguém tenha sido tão perseguido pelos raios quanto o azarado Roy  Sullivan, guarda-florestal no estado americano da Virgínia. Ele foi  atingido sete vezes. Na primeira, em 1942, ele perdeu a unha de um dedão  do pé. Em 1969, 1970, 1972 e 1973 escapou com queimaduras leves. Em  1976, feriu o tornozelo. Em 1977, ficou com o peito e a barriga  queimados. Agüentou todo esse tranco, mas acabou se suicidando em 1983.
O céu contra Veneza
 A  belíssima Basílica de São Marcos, na Praça São Marcos, na cidade  italiana de Veneza, foi assolada, em quatro séculos, por nove  demolidores raios. A história começou em 1388, e o mais grave acidente  ocorreu no início do século XVI. No lugar da igreja restaram apenas  ruínas. Depois de reconstruída ainda sofreu atentados do céu. O último  foi em 1762. Com a ajuda de um pára-raios, inventado alguns anos antes, o perigo foi afastado.
Mistério na Flórida
 Estado  americano mais atingido por relâmpagos, a Flórida nunca viu uma  tempestade como a de março de 1993. Chegou de surpresa e deu um baile na  rede que monitora o território dos Estados Unidos, despejando cerca de 5  000 raios por hora durante um dia inteiro. E então se foi. Tão rápido  quanto havia chegado. Até agora, os cientistas não conseguiram explicar a  causa de tão longa tormenta, que se desfez levada pelos ventos.
Praga da torcida
 O  ano de 1983 ficou registrado como um dos piores na história da  Sociedade Esportiva Palmeiras — atual campeão de futebol paulista e  brasileiro. Não apenas pelo péssimo futebol jogado pelo time. Em  setembro daquele ano, um raio atingiu o estádio do Parque Antártica, em  São Paulo, durante um treino, quase matando o meia-direita Carlos  Alberto Borges — que sofreu uma parada cardíaca — e derrubando técnico e  jogadores. A torcida não lamentou.
Proteja-se, que os raios vêm aí
 Se você for surpreendido por relâmpagos durante uma tempestade ou mesmo antes de a chuva chegar (isso mesmo, eles também caem antes dos temporais), acautele-se.
Fora de casa
 • Evite contato com cercas de arame, grades, tubos metálicos, linhas telefônicas, de energia elétrica ou estruturas metálicas.
 •  Afaste-se de tratores e máquinas agrícolas, motocicletas, bicicletas e  carroças; se estiver num carro com chapas metálicas, fique dentro dele  com as janelas fechadas.
 • Afaste-se de campos abertos, pastos, campos de futebol, piscinas, lagos, praias, árvores isoladas, postes e lugares altos.
 Dentro de casa
 • Evite tomar banho, usar chuveiro ou torneira elétrica.
 • Afaste-se de fogões, geladeiras e canos.
 • Evite ligar aparelhos e motores elétricos, pois eles podem queimar.
 • Afaste-se de tomadas e não use o telefone.
 •  Desligue da tomada os aparelhos eletrônicos como som, computador e  televisão. Para os aparelhos de televisão existem dispositivos  protetores que são instalados nas tomadas e podem ser encontrados nas  casas de material elétrico. Fax, computadores e secretárias eletrô-nicas  requerem proteção especial. Basta consultar as lojas especializadas em  eletroeletrônicos.
 • Por fim, agüente firme, pois o sufoco, geralmente, não dura mais de dez minutos.

 
 
 
 
 
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