Asterix e os gauleses

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Estamos no ano 50 antes de Cristo. Toda a Gália foi ocupada pelos romanos... Toda? Não! Uma aldeia povoada por irredutíveis gauleses ainda resiste ao invasor
por Cíntia Cristina da Silva

Fãs de história e de quadrinhos devem estar carecas de conhecer essa frase. Ela aparece na introdução de todos os 34 volumes de uma das séries de HQ mais conhecidas e queridas de todos os tempos: As Aventuras de Asterix, o Gaulês, criada pelos franceses René Goscinny e Albert Uderzo. A época, os personagens e os acontecimentos retratados nesse clássico dos quadrinhos coincidem com o período de apogeu do Império Romano do Ocidente e, mais precisamente, com as façanhas de seu principal general, Caio Júlio César.

César unificou o poder em Roma, tornou-se ditador e, apesar de nunca ter sido imperador, criou as condições para que seus sucessores governassem o maior império do mundo antigo. Seu nome se espalharia pelo planeta e se tornaria sinônimo de soberano, originando os termos “czar” (na Rússia) e “kaiser” (na Alemanha). Esse sucesso começou na Gália – região que corresponde hoje mais ou menos ao território da França – e pela guerra contra um punhado de bárbaros cabeludos: os gauleses.

Nos quadrinhos, eles são beligerantes, briguentos e comilões. Vivem em aldeias e clãs, às vezes rivais, às vezes aliados, e não são lá muito refinados. Na vida real, os gauleses são descendentes diretos dos celtas, um dos povos mais antigos da Europa, e chegaram a ocupar uma região muito além da França, onde se passam as aventuras de Asterix e onde César chegou com suas tropas em 58 a.C. Em 350 a.C. eles ocupavam terras que iam das atuais Bélgica e do oeste da Alemanha ao norte da Itália.

Os gauleses, ao contrário dos germânicos, não se importavam com o cultivo, como notou o próprio César em seu diário, publicado pela primeira vez em 51 a.C. com o nome de Commentarii de Bello Gallico – ou Comentários Sobre as Guerras Gálicas). “Não se esmeram na agricultura e a maior parte de seu sustento consiste em leite, queijo e carne.” Para ele, os gauleses eram guerreiros pouco organizados e caçadores apaixonados. “Existiam mais de 500 tribos na região, formando estados bárbaros que costumavam viver em guerra constante. A rivalidade era enorme entre as tribos germânicas, ao norte, as helvéticas, a leste, e as gaulesas, da região de Arverno”, diz Jean-Marie Guillon, historiador da Universidade de Provença, em Marselha, França.

Segundo Guillon, no século 1 a.C., o conquistador mais temido na Gália não se chamava Júlio César. Era Ariovisto, o rei dos germânicos. “No norte, seu poder chegou a ponto de ser uma ameaça à influência de Roma na região”, afirma Guillon. Ao sul, os romanos controlavam a Gália narbonense, cuja cidade principal era Massília (Marselha) e seu porto às margens do mar Mediterrâneo. Por toda a região, surgiam as primeiras “metrópoles” dedicadas ao comércio como Burdigala (Bordeaux), Corbilo (Nantes), Gergóvia (Clermont-Ferrand) e, é claro, Lutécia, que, nos quadrinhos de Asterix, é uma cidade com trânsito infernal e com um povo meio metido a besta e avesso a visitantes. Um lugar que hoje chamamos de Paris.

À presença dos romanos opunham-se tribos como os heudos, arvernos, belgas e comunidades marítimas do norte, na região que hoje compreende a Bretanha e a Normandia. Esses eram chamados de gallo comata, ou seja, gauleses cabeludos. É contra esses cabeludos que César lançou-se em uma guerra que mudaria para sempre a cara da região. E é aí que começa nossa história para valer.

Louros de César

No século 1 a.C., Júlio César era um dos três manda-chuvas de Roma, ao lado do também general Pompeu e do político Crasso. Pompeu era de longe o mais poderoso desse triunvirato, graças às vitórias militares que anexaram à Roma territórios da Ásia, como a Turquia, Mesopotâmia, Síria, Capadócia e Armênia.

O ambicioso César estava em desvantagem. Seu prestígio era muito mais uma herança de família do que algo que ele tivesse conquistado por si só. Plutarco, o historiador romano do século 1 que foi um de seus mais notáveis biógrafos, anotou que o futuro ditador de Roma se ressentia disso, dizendo que, na sua idade, Alexandre, o Grande, da Macedônia, já havia conquistado meio mundo. “E eu? Que fiz eu?”, choramingava. Em 58 a.C., com a desculpa de que toda a região estava na iminência de cair sob o poder de Ariovisto, César convenceu o senado a lhe ceder quatro legiões e cerca de 20 mil homens.

O melhor relato do que aconteceu daí para frente é mesmo o Commentarii de Bello Gallico. “Apesar do esmero em louvar os predicados de suas tropas, César fez uma completa descrição dos costumes gauleses”, diz Harry Rodrigues Bellomo, professor de História Antiga da Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Muitas delas foram tomadas quase ao pé da letra por Goscinny e Uderzo, roteirista e desenhista de Asterix. Segundo Harry, apesar de uma aldeia de gauleses simplórios que escorraçam o melhor exército do mundo com a ajuda de uma poção mágica parecer pura fantasia, os roteiros de Goscinny estão recheados de citações corretas e referências histórico-culturais.

Na composição do modo de vida de uma vila gaulesa, por exemplo, os quadrinhos são bastante precisos. “Há pequenos comércios de peixe e carne de caça, alguns serviços como os de ferreiros e carpinteiros, mas os caçadores e guerreiros é que ocupam o topo da pirâmide social”, diz Harry.

Assim, não seria impossível andar por uma aldeia gaulesa do século 1 a.C. e cruzar com alguém como Asterix, um guerreiro respeitado, que vivia entre caçadas e refregas. Ou com Obelix, dedicado a entregar menires e a caçar.

Para Harry, a descrição das roupas, objetos, carruagens e aspectos culturais, como a religião, são bastante coerentes nos roteiros de Goscinny. Os gauleses tinham cachorros e gatos domesticados e grande respeito pela natureza. Entendeu agora por que o Idéiafix – o cachorrinho do Obelix –, chora desesperado quando vê uma árvore sendo derrubada?

Outro personagem dos quadrinhos, Chatotorix – o pior cantor de todos os tempos – também representa um tipo comum na Gália: os bardos. “Eles tinham grande importância para as comunidades. Como os gauleses não dominavam a escrita, era função de menestréis como Chatotorix preservar a memória da vila. Os bardos cantavam vitória após vitória os feitos dos guerreiros para que eles não fossem esquecidos”, diz Guillon.

Irredutíveis

Esses gauleses cabeludos tinham duas ocupações preferidas: empanturrar-se em banquetes nababescos e brigar. Se o pega fosse contra os romanos, ainda melhor. Mas, diferentemente dos quadrinhos, os gauleses quase sempre levavam a pior. Na vida real, a Gália se rendeu ao Império Romano e os guerreiros gauleses pouco puderam fazer. “As aldeias eram ocupadas e muitos líderes tribais se renderam, preferindo aliar-se ao invasor a correr o risco de ser dizimado”, diz Guillon.

Em 52 a.C, César já estava de volta à Itália. Mas hospitalidade tem limite e pouco depois da partida do romano algumas tribos gaulesas se organizaram sob o comando de Vercingetórix para expulsar os invasores. Quando ficou sabendo da revolta, César voltou imediatamente à Gália. O gaulês não tinha chance no combate direto com o exército mais poderoso do mundo e adotou uma estratégia da “terra arrasada”. Empenhado em deixar as legiões romanas famintas, ele ordenou que plantações e vilarejos – onde os romanos pudessem conseguir comida – fossem incendiadas.

A Gália toda queimou. Toda? Não! Uma tribo seguiu as orientações do líder rebelde só até certo ponto: destruiu mais de 20 vilarejos em um dia, mas se recusou a ceder a capital, Avaricum (ou Bourges). Foi a luta dessa turma de guerreiros irredutíveis que inspirou a criação de Asterix. “Nunca existiu uma aldeia capaz de opor-se por muito tempo à dominação romana. Mas a resistência de Avaricum, mesmo durando apenas 27 dias, tornou-se célebre já naqueles dias”, diz Anne Bellangier, professora da Universidade Laval, em Quebec, no Canadá.

A cidade era fortificada, tinha alimento suficiente para meses e seus cidadãos eram orgulhosos e organizados. Resolveram ficar e enfrentar os invasores. A essa altura, os romanos, além de derrotar os gauleses, precisavam de comida. César ordenou que Avaricum fosse sitiada. Durante quatro semanas, suas paliçadas de madeira resistiram às catapultas romanas. O exército de César erigiu então torres diante dos muros da cidade. Num dia de tempestade, os defensores foram surpreendidos pelas legiões que saltaram a muralha e invadiram a cidade. “Nem velhos, nem mulheres, nem meninos os soldados pouparam”, escreveu César. Dos 40 mil moradores, apenas 800 sobreviveram.

A resistência em Avaricum deu a Vercingetórix, porém, tempo para se organizar e impingir aos romanos uma derrota parcial, mas humilhante, na Gergóvia. Dali, confiante que poderia se livrar dos romanos, esses neureoticos, como diria Asterix, o líder arverno convenceu 80 mil homens a segui-lo rumo a Alésia.

Vercingetórix só não contava com a astúcia de César. Os soldados romanos cercaram os gauleses, apesar do menor número. Em algumas semanas, 55 mil legionários abriram quilômetros de trincheiras e montaram armadilhas. Vercingetórix ficou isolado.

A última cartada do gaulês foi enviar sua cavalaria para buscar reforços pela Gália. César, então, mandou construir novas trincheiras no lado oposto, para deter os gauleses que viriam socorrer seu líder. “Mais de 250 mil gauleses responderam ao chamado. Mas, mesmo esse contingente não resistiu à organização do exército romano, que em número muito menor acabou com a única chance de Vercingetórix. Quando a fome se tornou insuportável, o bravo gaulês entregou suas armas aos pés de César. Os rebelados foram escravizados. O chefe foi levado a Roma, exposto como prêmio de guerra e, cinco anos depois, morreu decapitado.

A vitória contra os bárbaros gauleses levou quase dez anos, mas Júlio César cumpriu sua missão. Pouco depois ele estava pronto para atravessar o Rubicão e conquistar Roma. E o mundo. Os irredutíveis gauleses sobrevivem, no entanto, pelo menos no espírito e na imagem que os franceses têm de si mesmos.

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